quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

À Revelia


“Uh, baby, baby, its a wild world
And I always remember you like a
child girl.” (Cat Stevens)

A avó, voltada aos afazeres da casa, suspira. Há uma menina, no quarto ao lado, sufocando. Sufoca em luto de amor! André e Sofia retornavam de um casamento, entretanto um ônibus interrompeu a chegada.
A menina continua a esperar pelos pais. A avó não sorri, mas não pode chorar frente àquela dor, a dor da menina.
Há, numa das caixas de Sofia, lembranças da infância. A menina toca nas recordações da mãe e desmancha-se. Há cartas, florzinhas murchas, fitinhas do Senhor do Bom Fim, sementes e pregadeiras de tipos e cores várias. Sua mãe mantinha-se ligada ao tempo. O tempo em pedaços de vida, o tempo em instantes... Os livros favoritos, da Sofia adolescente, continuam na estante, à esquerda da cristaleira. Mobidick, As Meninas, As Aventuras de Tom Sayer, O espantalho... “Queria lê-los, mas agora é tarde...” Sua mãe não sentiria orgulho, não comentaria mais sobre as características das personagens e dos enredos, não daria mais aquela gargalhada vibrante por amar tanto sua pequena e seus avanços intelectuais.
Nada mais valia a pena. Ao menos por enquanto.
Sua memória descontinava somente apreensões e desventuras. O futuro, ao lado de sua avó, não lhe estimulava planos. Seria uma mulher amarga e sem a capacidade do perdão? Mas... será que o homem possue a tal capacidade de perdoar? Um nó, isto sim. Um nó górdio, sem respostas.
A avó trouxe um lanche. Pão com queijo e manteiga feita em casa. Ardiam, a garganta e o ventre, só de pensar comê-lo. O suco de maracujá, antes seu favorito, amargava ainda mais a visão daquele espaço a sua volta. Que lugar é este? Que casa é esta? Onde eles estão?
“Vó, fala pra mamãe que fui à casa de Beatriz, está bem?”
Bia me era cara! Uma amiga sem firulas. Uma menina, como eu, repleta de curiosidade sexual e paixão pela existência. Pulamos tanta corda! Corremos e vislumbramos, juntas, um amanhã cuja extensão seria a permante e constante amizade que cultivávamos. Tinha tudo para ser uma árvore frondosa com muitas flores! Bia não resistiu a uma complicação na garganta e a árvore não chegou a dar seus frutos.
Mamãe dizia que Papai do Céu chama quando não suporta a saudade. E ele chamou Beatriz. Será que Deus não sente saudades de mim? Papai afirmava que sim, contudo me ensinou que cada um de nós tem uma missão a ser cumprida e a Bia, certamente, já havia cumprido a sua. Morta aos 10 anos! Qual terá sido a missão de Beatriz? Eu não sei!! Só espero ser amada por um Deus como o Deus que ama Bia!
A última história que ouvi de mamãe, foi a história bíblica de José. Fiquei bastante assustada porque seus irmãos não o amavam. Como deve ter sido difícil não ser amado por aqueles que lhe eram caros como Bia fora para mim! Mas a autoestima de José sobreviveu a tudo. Sobreviveu aos irmãos, à traição, à escravidão, à prisão, às lutas... É! Acho que quero ser parecida com José. Uma mulher de autoestima inalterada por causa do amor de alguém que não se vê, mas que é. Deus? Ele disse “Eu sou” para Moisés. Acho que o nome não importa muito.
José era homem de fé como Bia. Tornou-se governador do Egito! Bia morreu, mas governou muitos corações. Enquanto seus pais oravam por um milagre, Bia não esperava nada. Acho, sim, que ela também devia sentir muita saudade Dele.
Arrumei um painel de fotos na parede do meu quarto. Mamãe me ajudou. Acrescentei alguns fragmentos de recortes que não sei se são interessantes. Dizem que a atualidade é relativa, mas mamãe nunca suportou a ídéia do relativismo. “Um conceito idiota para ser levado tão à sério”, reclamava ela. Sempre declarou que a verdade nunca deixaria de ser verdade ainda que nós a desconhecêssemos. Papai fazia côro com ela sobre o assunto. Eu também duvido desta teoria! No hoje, vejo e entendo que não há nada relativo! Tudo é ou não é! E o que é, é com muita força porque estou vivendo e sentindo. O que é nunca deixará de ser ou será pela metade. É íntegro. Impassível.
Os corpos presentes e as almas... distantes? Estaríam juntas, unidas pelo laço que não se desfaz? Mãe! Pai! Acordem! Saiam do meio dessas flores transfiguradas e vamos para casa! Vovó prepara o almoço. Hoje, teremos carne seca, pai, que você adora. E, depois, mãe, aquele pudim cheiroso e macio de sobremesa.
Quero abrir os caixões. Falta ar, quero lhes permitir novo sopro de vida ou me enterrar com eles. Ao mesmo tempo, em meio ao estranhamento, sinto um alvoroço no peito. É um alvoroço atemporal, uma contância de sonambolismo e ternura, um visgo de descoberta se misturando ao medo. O novo se achega. Aconchega-se como o mundo. Nasce de modo arqueado sobre meus ombros. Estou morta com Bia, Sofia e André. Estou viva num “eterno”. Desconhecido e sublime eterno! Como dói parir tanta surpresa!
O menino André sonhava em se casar e ter filhos, muitos filhos. Sua menina lhe preenchia todos os espaços. Não havia vagas, somente plenitude.
Na porta, ainda se podia ver o guarda-chuva que, por insistência de Sofia, jamais era esquecido. Naquele dia, esqueceu. Esqueceu-se do guarda-chuva, das botas, do casaco marrom, dos óculos, das chaves, dos filhos ... que não tivera e que não poderia mais ter.
“Quero calçar os sapatos de salto, aqueles vermelhos, de mamãe, vó. Onde estão?”
“Foram os últimos que sua mãe usou!”
“São meus favoritos, mãe!”
“Um dia você terá belos sapatos de salto, vermelhos”, lembrou-se.
E os sapatos não voltaram. Mancharam-se no sangue, nas ferragens, nos vidros quebrados. No poço cujo balde apodreceu.
A menina sou eu. E nem a masturbação me leva ao esquecimento. Tentei, por Deus que tentei, inúmeras vezes..., mas não consegui. Há estalos comendo minhas entranhas, fazendo corroer e desmoronar cacos e partes e veias e sombras. Neste pôr-de-sol, as velas estão acesas.
“Não vou comer, vovó. Estou sem apetite.”
Gosto, vibração, estrada... o que me encontrará neste hoje? As velas continuam e as gentes continuam. A velar, a velar, a velar...
Mas os corações estão parados. Ao menos por alguns instantes. Quando os corpos baixarem à cova funda, voltarão a bater como dantes. Só o meu que não. Acho que não.
Antes do acidente, ouvi, pela TV, que cientistas da NASA acreditam que o sol está se desfazendo. Será que o grande sol previu meu buraco negro? Desfaço-me, sim.
“Você precisa comer, filha!”
Ela me chamou de filha. Filha? Nunca mais! Nunca mais! Não quero! Quero, apenas, sentir a dor e este vento-corrente subindo pelas pernas, penetrando meus ossos, esfriando as artérias, acendendo minha solidão.
Quero me seguir, de perto, neste parto de surpresa. Sorver cada contração. Não quero anestesia. Quero o corte e os braços vazios. Quero o silêncio posterior e a lembrança daquilo que não poderá se concretizar. A saudade ficará para depois do túnel escuro, porque não sou pedra, sou carne e desfaleço de amor.
“Vó, onde estão meus lápis de cor?”
“Na gavetinha de cima da cômoda de seu pai.”
Gosto de desenhar. Mais do que desenhar, pintar com os lápis. Não gosto de hidrocores. Tiram o brilho natural dos traços imperfeitos. Gosto da imperfeição, da esquisitice, do torto e coxo modo de expressão.
Portanto... à revelia, vou construir o meu desenho. À revelia da circunstância que me tomou de assalto. À revelia farei um sol gigantesco e abóbora. À revelia contrariarei os estudiosos da psicologia ao lhes apresentar muitas cores, cores vibrantes, ondas de ousadia, transparências verdes.
Quero que a marca fique. Quero cicatriz aparente, granulosa. Quero ouvir, a cada dia, o soar das bombas caindo sobre a multidão inocente e ver os feridos em agonia perene... à revelia, à revelia de mim.
Vivo a guerra fria, neste hoje. Jamais enfrentarei meu inimigo diretamente. Usarei de estratagemas, promessas; conquistarei um exército de sons e, neles, me vingarei deste tempo.
A cada novo dia, à revelia de mim... a cada novo dia, um novo dia...
Deus me sabe.

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